SERTÃO DECANTADO
Num livro em que comenta o Grande Sertão: Veredas, Walnice Nogueira Galvão[1] assinala a presença de três fases essenciais nas letras brasileiras, no que se refere ao sertão como temática. Um primeiro regionalismo, em meios do século XIX, ganha força nos romances de José de Alencar (Til, O Sertanejo), Visconde de Taunay (Inocência) e de Franklin Távora (O Cabeleira), tendo como projeto uma reação, ainda que talvez inconsciente, à modelar literatura da Corte. O sertão, ali, era um emblema. A querência por uma brasilidade criava seus heróis de argila e o exotismo sempre surgia como possibilidade de status.
Um segundo momento aparece como óbice a esse olhar do sertão enquanto paraíso – perdido, porque não descoberto - de um Brasil metropolitano. Agora, com Inglês de Sousa (O Missionário) e Domingos Olímpio (Luzia-Homem), a luz romântica se faz nublar por um enfoque menos ideal, através do qual saltam aos olhos algumas mazelas encobertas. Em 1928, vem a público mais uma exceção da literatura nacional: o Macunaíma, de Mário de Andrade, aglutina no “herói sem nenhum caráter” os diversos traços de brasilidade que o fazem fugir às malhas de um localismo datado. A partir de então, os escritores brasileiros contagiam-se uns aos outros de uma febre do regional, onde um fechamento deliberado do mundo e uma feudalização da inteligência buscam, em vão, a sempre fugaz essência da nação.
Imerso historicamente nessas águas, Guimarães Rosa elege em sua escritura uma outra forma de narrar, vendo na localidade específica apenas uma ignição, um ponto de saída para a sua prosa. A República Velha é provavelmente a época em que se desenvolve a narrativa do Grande Sertão: Veredas. Mas o romance de 56 extrapola o tempo e o espaço pela dimensão metafísica, universalidade temática e, sobretudo, pela tentativa de solucionar impasses vivenciais em linguagem fabulosa.
Sob o nome genérico de sertão, o livro é emboscada aos leitores menos atentos. O romance se inscreve nos sertões de Minas Gerais, do sul da Bahia e sudeste de Goiás, que têm uma vegetação boa para a criação de gado - vislumbrada nas referências simbólicas com que o texto sempre os resgata. Ao contrário do sertão setentrional, este não é árido, mas banhado pelas veredas, pequenos rios que têm à sua margem a imponência do buriti. Nem por isso faz-se menos revolto e repleto de barbáries que caracterizam seu correspondente nordestino.
Rosa, contudo, não conforma sua escrita à mera fôrma de um lugar. Sendo o sertão o mundo, como afirma constantemente com variações, traz para dentro de si todos os espinhos e carências com que o universo alhures faz dele uma metonímia. Por vezes, ele, sertão, é sobretudo um sentimento, uma sensibilidade solitária:
“ E dez, arranchando entre Quem-Quem e Solidão, e muitas idas marchas : sertão sempre. Sertão é isto : o senhor empurra pra trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera, digo” ( GSV, p. 249 ). “ Sertão é o sozinho. Compadre meu Quelemém diz : que eu sou muito do sertão ? Sertão é dentro da gente” ( GSV, p. 270 )[2].
O romance armazena em si o espaço geográfico da travessia de Riobaldo, o latifúndio existencial em que se efetua uma busca de sentido ( afetivo, religioso ) e o local da pesquisa linguística, onde se demanda a expressão poética. Por esse olhar, o sertão é, da alma, os labirintos, sendo as veredas trilhas do possível, sempre pensadas na escritura barroca, de modo hamletiano :
“ A vida é muito discordada. Tem partes. Tem artes. Tem as neblinas de Siruiz. Tem as caras todas do Cão, e as vertentes do viver” ( GSV, p. 445 ).
As veredas, por sua vez, simbolizam o curso do estar-aí ( o dasein heideggeriano ), o fluxo inestancável da ex-istência, desenhada no milenar arquétipo da água. Riobaldo, com todos os seus princípios, não pôde se furtar à experiência contemplativa de um amor que ele imaginava homossexual. Exemplo candente de que o homem não “é”, ele sempre “está” - navegando na movência do mundo. Veredas, palavra anfíbia: caminhos, correntezas. E Dia-dor-im representa essa travessia amorosa que o narrador há de cumprir, na qual a dor é passagem obrigatória.
Outro aspecto que assombra é o grau de violência do sertão que o escritor mimetiza e recria. É percorrer um terreno rastreado dizer que tal universo é uma versão moderna da Idade Média. Ali, são transmudados em valores de nobreza os atos de crueza e barbárie. O coronelismo, estrutura social da primeira república, representada enfaticamente em Zé Bebelo, reflete uma forma atualizada de um feudalismo anacrônico. O romance, aliás, faz a todo instante referências medievais, na oralidade dos causos, nas cantigas de cordel ou até na recuperação textual de escritos como a novela de cavalaria História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França. Lembra ainda Nogueira Galvão :
“ coroa o processo o apelo feito intermitentemente a um vocabulário arcaizante, advindo da literatura medieval : justas, torneios, ginetes e corcéis aparecem acoplados a abstrações da mesma proveniência, como honra, justiça, lealdade, palavra dada, etc.”( pp. 38-9 ).
A indumentária de justiceiro que os jagunços a todo instante assumem faz recordar, inevitavelmente, a imagem dos cavaleiros andantes, o que fica muito claro no episódio em que decide Medeiro Vaz se dedicar à jagunçagem, com uma reverberação, aqui, do Dom Quixote :
“ Então Medeiro Vaz, ao fim de forte pensar, reconheceu o dever dele : largou tudo, se desfez do que abarcava, em terras e gados, se livrou leve como que quisesse voltar a seu só nascimento. Não tinha bocas de pessoa, não sustinha herdeiros forçados. No derradeiro, fez o fez – por suas mãos pôs fogo na distinta casa-de-fazenda, fazendão sido de pai, avô, bisavô ( ... ). Daí, relimpo de tudo, escorrido dono de si, ele montou em ginete, com cacho d’armas, reuniu chusma de gente corajada, rapaziagem, dos campos, e saiu por esse rumo em roda, para impor a justiça” ( GSV, pp. 33-4 ).
Mas se dizer apenas isso não é pouco, é mínimo diante do que o livro reserva. A truculência alia-se aos sentimentos mais refinados que o medievo entregou ao ocidente – flagrados na maneira com que Riobaldo percebe Otacília ou Diadorim – e às incertezas metafísicas que os absurdos e incoerências do lugar motivam.
Em 1898, Euclides da Cunha inicia a escrita d’Os Sertões a partir de uma construção barroca e figural, esquivando-se das armadilhas e “fazendo balancê” com os encantos ou recusas que a complexidade de Canudos acumula. De modo similar, Guimarães Rosa elabora o seu romance observando as contradições que definem sistemas e indivíduos. Quer, assim, pelo caminho poético, decantar esse “mundo misturado”, no duplo senso que a palavra guarda: celebrar e separar. E poucos enxergaram o sertão de forma tão múltipla e aguda como o autor dessa obra-prima universal, uma visão exata em linguagem de topázio – luminar e permanente.